Eleito na esteira do bolsonarismo, o governador de São Paulo Tarcísio de Freitas (Republicanos) coleciona acenos à base e à oposição ao completar 100 dias de seu primeiro mandato como gestor público. Com o objetivo de se desvencilhar dos rótulos ideológicos que o levaram ao Palácio dos Bandeirantes em 2022, a aposta do chefe do Executivo paulista foi a de investir em uma carteira de privatizações como marca própria, delegando a articulação política para o presidente do PSD e secretário de Governo, Gilberto Kassab.
A cena em que Tarcísio quase quebrou o martelo da B3 ao fechar proposta pelo leilão do trecho norte do Rodoanel traduz o perfil que busca imprimir como gestor público. Para tirar as desestatizações do papel, o governador lançou uma carteira de projetos de venda de ativos. Ainda deu início ao processo de privatização da Sabesp, empreitada que levará a uma “batalha campal” a ser travada na Assembleia Legislativa, segundo aliados.
Erradicado fora de São Paulo, Tarcísio assumiu o desafio de criar um grupo político próprio que mistura quadros técnicos com caciques de siglas. Isso porque precisou equilibrar, na formação do primeiro escalão, um complexo arranjo de forças resultantes de um palanque formado por Kassab e pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Apesar da proximidade com Bolsonaro, ele se afastou do padrinho político ao caminhar ao lado de Lula e dos demais governadores após os atos golpistas de 8 de janeiro. Distribuiu elogios a ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) e afirmou que não é “bolsonarista raiz”.
Ainda aprovou um projeto de lei criticado pela direita, que garante medicamento à base de canabidiol na saúde pública. Em meio à tragédia que vitimou 65 pessoas no litoral norte de São Paulo, posou ao lado de Lula e elogiou a ação do governo federal no combate às chuvas. Tal postura rendeu elogios inclusive da oposição mais aguerrida do governador no estado.
“Tarcísio é um governador presente. Em qualquer situação difícil (como São Sebastião), ele chegou e montou um governo lá. A martelada também vai continuar. Teremos muitas privatizações no Estado de São Paulo”, defendeu o vice-presidente da Alesp, Gilmaci Santos (Republicanos).
Em mais de uma entrevista, o governador disse preferir “racionalidade e pragmatismo” em detrimento aos rótulos de “esquerda” ou “direita”, e se diz diferente do governo federal por encampar agenda de privatização. Se, de um lado, defendeu o aumento da cobertura vacinal em São Paulo, do outro, proibiu a cobrança de vacinação contra covid para acesso a locais públicos e privados.
A promessa de um governo técnico não o privou de distribuir cargos a este grupo. A Secretaria de Segurança Pública e a Secretaria da Mulher, por exemplo, ficaram com Guilherme Derrite e Sonaira Fernandes. Tarcísio ainda nomeou Guilherme Piai, no Instituto de Terras do Estado de São Paulo (Itesp), e Filipe Sabará, secretário-executivo de Desenvolvimento Social.
“O Tarcísio é de centro-direita. Ponto. A tendência é sempre continuar pelo centro. Ele não será pressionado pelos extremistas”, defendeu o secretário de Projetos Estratégicos Guilherme Afif.
A posição se traduziu na publicação de normas. Levantamento da consultoria Radar Governamental mostra que, dos 65 vetos totais que o governador assinou, 8 eram de autoria do PSDB e 8 de autoria do PL, referentes a projetos desenhados pela legislatura anterior. Na sequência apareceram o Republicanos, partido de Tarcísio, e o PT com 4 vetos cada um.
“Tarcísio está jogando em todos os lados. Ele está muito mais para o kassabismo do que para o bolsonarismo. Certamente percebeu que há uma lacuna deixada pelo próprio Bolsonaro quando abdicou de fazer o jogo institucional. Tarcísio está querendo ocupar esse espaço”, disse o cientista da Fundação Getulio Vargas (FGV) Marco Antônio Teixeira.
A deputada estadual Mônica Seixas, do PSOL, no entanto, não entende que a postura de Tarcísio é de acenos à esquerda. “Reforço que, na prática, estamos vivendo um autoritarismo sem precedentes. Não há diálogo, o que está sobrando na casa é a violência. André do Prado (presidente da Alesp) está refém dos seus colegas de partido, que têm incendiado as sessões e deixado o presidente constrangido em relação a sua autoridade”, afirmou.
Agenda
Opositores acreditam que a agenda de desestatização do novo governo, vendida pelo governador em duas rodadas de negociações internacionais, também é tentativa de Tarcísio se viabilizar politicamente. A venda da Sabesp, por exemplo, poderia significar um aumento de R$ 40 bilhões no caixa já cheio do governo, o que levaria a um retorno em investimentos favorável à imagem de um Tarcísio candidato em 2026; seja à reeleição, seja ao Planalto.
A desestatização da companhia é assunto frequente em eventos do governador. Recentemente, prometeu benefícios às prefeituras com a venda da empresa. Ele se engaja pessoalmente na pauta e chega a se disponibilizar a falar diretamente com deputados da oposição para apresentar suas ideias.
Em nota, o governo destacou diversas ações prioritárias dos 100 dias, entre elas, o leilão de concessão do trecho norte do Rodoanel, a atuação no combate à tragédia em São Sebastião, a redução da carga tributária, a ampliação da cobertura vacinal e os R$ 180,17 bilhões projetados em investimentos dentro do pacote de desestatização. “A decisão de montar um secretariado técnico e reestruturar algumas das pastas para priorizar a atração de investimentos foi estratégica para dar eficiência e resultado na formulação de políticas públicas”, afirmou.
Resistência
Os principais focos de resistência à sua atuação, além da Sabesp, estão na tentativa de privatizar o Porto de Santos, de passar uma Reforma Administrativa na Alesp e de criar o mecanismo de Medida Provisória Estadual.
A oposição também reclama da postura do governo em relação à Segurança Pública, já que Tarcísio chega aos 100 dias de gestão com um aumento frequente da letalidade policial. “Tarcísio não tem entregas importantes neste período. Apenas anúncios de privatizações questionáveis materializadas no show das marretadas”, disse o deputado Emídio de Souza (PT).
Recuos da administração são vistos com desconfiança. Tarcísio voltou atrás de eliminar as câmeras corporais usada pelos policiais, de eliminar a secretaria da Pessoa com Deficiência e de vetar lei que estendia o prazo de validade de atestados de transtorno do espectro autista. A última decisão levou à derrubada de seu veto na Alesp, autorizada pelo governo.
O governo também mudou de ideia ao acatar uma liberação de catracas durante a greve dos metroviários, e depois judicializar a própria decisão para manter a cobrança normal. O movimento foi visto como uma “traição” pela categoria.
Mesmo aliados têm ressalvas para algumas dessas promessas, como a das MPs, por receio de desidratar o poder do Legislativo. Isso porque ele emplacou perfis considerados moderados na presidência da Alesp, que ficou com André do Prado (PL), e na liderança do governo, com Jorge Wilson (Republicanos), mas tem uma base governista menos coesa. Siglas que apoiaram Tarcísio na eleição ainda cobram mais espaço na administração pública.
Com 54 deputados na base e o alinhamento esperado de parlamentares do PSDB, que se declaram independentes, o governador pode ter facilidade em aprovar projetos de lei, mas vai lidar com uma margem de erro mais apertado em casos de Propostas de Emenda à Constituição, que precisam do endosso de 57.
Até agora, porém, Tarcísio só mandou um projeto para a Alesp, referente a construção de habitação em São Sebastião. Ainda se desenha uma disputa interna entre Kassab e o secretário da Casa Civil, Arthur Lima, de modo que o poder do Executivo no Legislativo ainda não foi colocado à prova.
A deputada estadual Marina Helou aponta que a disputa de forças políticas que pressionam a gestão prejudicam a articulação na Casa. Para ela, as marcas dos 100 dias ainda estão no campo da narrativa. “Privatização não é uma marca nova. (O ex-governador João) Doria queria a mesma marca para ele. Eles buscam o mesmo espaço. Por enquanto está no campo das narrativas”, afirmou.
Fonte: O Estado de S. Paulo
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